Artigos
MEDICINA ANTROPÓSOFICA E SEUS FUNDAMENTOS
Extraído do livro Medicamentos antroposóficos: Vademecum. Gardin NE, Schleier R. São Paulo: Editora João de Barro, 2009.
A MEDICINA ANTROPOSÓFICA
A medicina ampliada pelos princípios da antroposofia, designada por medicina antroposófica, amplia os conhecimentos da medicina acadêmica pela concepção de que o ser humano, além de seu corpo físico, também é uma realidade psíquica e espiritual individualizada, que interage com seu meio ambiente, sociedade e cultura.
Tal ampliação se deve ao desenvolvimento do pensamento, o qual, partindo do lógico, objetivo e sensível, pode alcançar a essência arquetípica dos processos naturais.
Essa metodologia está fundamentada na obra do filósofo social Rudolf Steiner e em seu trabalho conjunto com a médica Ita Wegman, proporcionando-nos um novo conceito de saúde, enfermidade e cura. Portanto, a medicina antroposófica não é uma simples técnica de diagnóstico e medicação; ela possibilita um caminho de desenvolvimento interior do médico, permitindo-lhe conferir, além desses preceitos médicos, um auxílio no processo de conhecimento e desenvolvimento próprio e de seus pacientes.
O Ministério da Saúde define, em sua Portaria 1600 de 2006, que “a medicina antroposófica apresenta-se como uma abordagem médico-terapêutica complementar, de base vitalista, cujo modelo de atenção está organizado de maneira transdisciplinar, buscando a integralidade do cuidado em saúde. Entre os recursos terapêuticos da medicina antroposófica, destacam-se: a utilização de aplicações externas (banhos e compressas), massagens, movimentos rítmicos, terapia artística e uso de medicamentos naturais (fitoterápicos ou dinamizados). (...) Utilizam-se recursos que estimulam os mecanismos naturais de prevenção de agravos e recuperação da saúde, com ênfase na escuta acolhedora, no desenvolvimento do vínculo terapêutico e na integração do ser humano com o meio ambiente e a sociedade.”
Assim, desde a década de 1920 ela vem se expandindo a partir da Europa, sendo praticada em vários países do mundo.
No Brasil, o movimento médico antroposófico começou na década de 1950 com o pioneirismo da médica Gudrun K. Burkhard. Antes disso, já havia membros da Sociedade Antroposófica entre os imigrantes alemães nas regiões Sul e Sudeste do Brasil.
Em 1969, com o apoio da Associação Beneficente Tobias, Burkhard inaugurou a primeira clínica de medicina antroposófica no Brasil, a Clínica Tobias, em São Paulo. Atualmente, além da sede nacional da Associação Brasileira de Medicina Antroposófica, a Clínica Tobias abriga também uma área de consultórios particulares, cursos de formação em medicina antroposófica e terapia artística, assim como o ambulatório didático e social.
O Brasil, atualmente, conta com o segundo maior contingente de médicos antroposóficos do mundo, somente atrás da Alemanha, e o primeiro em médicos em formação antroposófica.
OS MEDICAMENTOS ANTROPOSÓFICOS
Quando a medicina antroposófica começou a se estruturar, houve a necessidade de que um laboratório farmacêutico atendesse às suas designações. Dessa forma, em 1921, Steiner e Wegman criaram a Weleda e os primeiros produtos medicinais antroposóficos começaram a ser produzidos. Oskar Schmiedel era o químico responsável. A sede da Weleda estabeleceu-se em Arlesheim, Suíça.
Em 1935, o químico Rudolf Hauschka iniciou os trabalhos do laboratório Wala, tendo também como base os fundamentos da Antroposofia de Steiner. Desde então, a Wala produz medicamentos para uso injetável subcutâneo, glóbulos sublinguais e produtos de uso tópico.
Em 1971, a Abnoba foi fundada na Alemanha para produzir e comercializar especificamente preparações de Viscum album. Suas pesquisas farmacêuticas são orientadas pelo método de conhecimento científico de Goethe.
Na tentativa de melhorar a eficácia dos preparados de Viscum album, membros da Verein für Leukämie and Krebstherapie (Sociedade para o Tratamento da Leucemia e Câncer) desenvolveram em 1972 o medicamento Helixor, liderados pelos médicos Dietrich Bóie e Maria Günczler em Stuttgart, Alemanha. Como a demanda foi crescente, em 1975 foi fundado o laboratório Helixor, que atualmente também produz Helleborus niger.
Na cidade austríaca de Pörtschach, desde 1980, o laboratório Novipharm dedica-se à produção de Viscum (Isorel) a partir do trabalho de Herta, Rudolf, and Elisabeth Weiss.
No Brasil, o casal de farmacêuticos Marilda e Flávio Milanese desenvolveu a farmácia magistral Sirimim a partir de 1998, que produz novos medicamentos antroposóficos através do éter químico. Seus medicamentos não usam álcool, mas sim glicerina a 70% para tornar sua assimilação mais fácil, além de glóbulos e cremes.
Todos os medicamentos antroposóficos são obtidos da natureza, a partir de substâncias minerais, vegetais ou animais. Não há medicamento antroposófico sintético, embora o médico antroposófico possa recorrer aos chamados medicamentos alopáticos sintéticos quando necessário. Tampouco se concebe um medicamento antroposófico obtido de uma planta geneticamente modificada, ou que em seu processo de cultivo foram usados agrotóxicos, fertilizantes químicos ou herbicidas sintéticos.
A razão disso está na visão antroposófica de que os processos fisiológicos ou patológicos do ser humano encontram na natureza algum processo correlato ou oposto. De acordo com cada caso, a medicina antroposófica indicará um medicamento para estimular no organismo humano uma reação que levará à cura ou alívio da enfermidade. O medicamento antroposófico, portanto, estimula as forças auto-curativas do organismo.
Um medicamento antroposófico pode agir, de acordo com sua composição, de três modos:
(1) estimulando um processo contrário à doença – esta é a maneira alopática de ação, por exemplo, para uma inflamação pode-se usar uma planta que estimule no organismo suas atividades anti-inflamatórias;
(2) agindo de modo igual à doença e provocando uma reação contrária maior do organismo no sentido da cura – princípio homeopático de ação: aquilo que provoca, também pode curar;
(3) proporcionando um modelo orientador para o órgão ou sistema doente, levando à sua atividade sadia – este princípio é exclusivo dos medicamentos antroposóficos.
Muitos medicamentos antroposóficos são dinamizados, ou seja, diluídos e agitados ritmicamente, um processo farmacêutico que ‘desperta’ na substância seu potencial curativo, que antes estava ‘adormecido’. Há, também, remédios antroposóficos feitos a partir de tinturas de plantas, extratos secos e chás, ou seja, medicamentos não dinamizados.
Existe grande preocupação com a qualidade da substância que será usada para se fazer o medicamento antroposófico, pois se entende que a substância é a fase final de um processo. Então, o processo precisa ser tão valorizado quanto seu produto final. O modo de cultivo (orgânico e, preferencialmente, biodinâmico) e o momento mais adequado tanto para semeadura, como para colheita – de acordo com seu potencial terapêutico – é fundamental para medicamentos de origem vegetal.
Entre o mineral natural e o derivado de uma reação química sintética – ainda que ambos tenham a mesma composição – o mineral natural será o escolhido para compor um medicamento antroposófico justamente porque ele trará consigo todo o processo natural que culminou na substância mineral.
Para os metais, a dinamização é feita levando-se em consideração a fase do ano, pelas influências que a Terra sofre dos planetas, Sol e Lua.
As principais vias de administração dos medicamentos antroposóficos são a oral, a injetável subcutânea e a tópica (compressas externas de pomadas, cremes, tinturas, óleos e infusões). De acordo com a trimembração do ser humano – um dos fundamentos da medicina antroposófica – e o que se pretende estimular, o médico optará por uma ou outra via.
Oficialmente a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) reconhece os medicamentos antroposóficos como uma categoria de medicamentos dinamizados, e a farmácia antroposófica é reconhecida pelo Conselho Federal de Farmácia.
A instituição que congrega os farmacêuticos antroposóficos no Brasil é a Farmantropo (Associação Brasileira de Farmácia Antroposófica), fundada em 2005 e filiada à Associação Internacional de Farmacêuticos Antroposóficos (IAAP), sediada em Dornach, Suíça.
A CONSTITUIÇÃO DO SER HUMANO DE ACORDO COM A ANTROPOSOFIA
Nos fundamentos da antroposofia estão duas estruturas constitucionais básicas do ser humano, uma tríplice e outra quádrupla. São importantes alicerces para o diagnóstico antroposófico e, por conseguinte, para a terapêutica.
A estruturação quádrupla do ser humano, ou quadrimembração, é composta por organizações que, em equilíbrio, determinam a saúde.
A organização física é o que o ser humano tem em comum com o reino mineral, ou seja, os minerais, substâncias inorgânicas. Porém, como todo ser vivo, hierarquicamente acima da organização física está a organização vital, com suas leis próprias diferentes das leis físicas.
A organização vital domina o inorgânico para o desenvolvimento da vida vegetativa. É de sua competência o crescimento, a reprodução celular, o anabolismo, a regeneração e a cicatrização. É o que o ser humano tem em comum com o reino vegetal. A caracterização dos ritmos orgânicos, a memória, a adaptabilidade e a sensação de bem estar são qualidades da organização vital. Seu suporte material é a água – única substância sem a qual não há vida, no sentido biológico da palavra.
A organização anímica (do latim anima, “alma”, “animalidade”) que o ser humano tem em comum com o reino animal deve ordenar os processos vitais para que exista vida de relação. São suas características a sensibilidade, a dualidade simpatia-antipatia, os instintos e o psiquismo. As forças do desgaste estão ligadas à organização anímica, assim como os movimentos.
Existe, portanto, uma luta de opostos complementares entre as organizações vital e anímica, uma que promove o crescimento e a vitalização, e outra que desgasta a vitalidade e dá consciência.
O quarto e último membro é a organização do eu, exclusiva do ser humano, que deve dominar os princípios anímicos e os instintos para o desenvolvimento da vida interior: consciência de si, auto-reflexão e habilidade para modelar o destino individual. O andar ereto, o falar e o pensar são qualidades da organização do eu. Para a antroposofia, isso é de tal importância que torna o ser humano tão diferente dos animais quanto estes dos vegetais e estes, por sua vez, dos minerais. Por isso, de acordo com esta visão, o ser humano não pertence ao reino animal.
Dentro da organização física, além de sua parte sólida, existem os constituintes líquidos, aéreos e o calor. A medicina antroposófica chama de organismo líquido o conjunto de líquidos orgânicos que mostra como a organização vital atua na organização física. Já o organismo aéreo, conjunto de gases, revela a atuação da organização anímica na física. E o organismo calórico – temperatura orgânica, sua regulação, distribuição e fisiologia –, mostra a atuação da organização do eu na organização física.
A medicina hipocrática, resgatada pela medicina antroposófica, considerava quatro humores ou forças básicas no ser humano: a bile negra, ligada ao temperamento melancólico, aos pulmões e ao elemento terra (organização física); a fleuma, ligada ao temperamento fleumático, ao fígado e ao elemento água (organização vital); o sangue, ligado ao temperamento sanguíneo, aos rins e ao elemento ar (organização anímica); e a bile amarela, ligada ao temperamento colérico, ao coração e ao elemento fogo (organização do eu).
A estrutura tríplice, ou trimembração, distingue sistemas que interagem dinamicamente.
O sistema neurossensorial é composto fundamentalmente pelo sistema nervoso central e periférico e órgãos dos sentidos, incluindo a pele. Tem como características básicas a imobilidade, a temperatura mais baixa e a pequena capacidade de regeneração. Sua célula mais típica é o neurônio, extremamente especializado, que funciona em rede e não isoladamente.
Do ponto de vista estrutural, o sistema neurossensorial está sediado na cabeça, com partes moles internas e arcabouço ósseo externo, este composto por ossos chatos que não se articulam. Na cabeça, apenas a base do crânio e a articulação têmporo-mandibular apresentam movimento articular.
Do ponto de vista morfológico tudo é simétrico no sistema neurossensorial. A metade direita é exatamente igual à esquerda.
Totalmente oposto ao neurossensorial é o sistema metabólico-locomotor, composto pelos órgãos infra-diafragmáticos e os membros. O calor e o movimento são suas características marcantes, além da habilidade de multiplicação e regeneração. Um típico representante celular é o hepatócito, generalista – cada hepatócito faz o que todos os outros fazem – e independente dos demais. Mesmo morfologicamente falando, existe polaridade entre o neurônio e o hepatócito.
A estrutura óssea dos membros é totalmente oposta à da cabeça. Os ossos são longos e internos, com partes moles externas. Todos eles se articulam para assegurar grande a característica desse sistema: o movimento.
Morfologicamente, na cabeça reina a ordem, no abdome reina o caos. A assimetria é marcante, especialmente ao se observar os intestinos, a disposição das vísceras como fígado, baço, pâncreas, etc. As grandes exceções simétricas no abdome são os rins, as supra-renais e as gônadas – todos eles tiveram sua origem embriológica comum e migraram desde a cabeça até o abdome, porém mantendo uma membrana que os separa do restante dos órgãos, o peritônio. Embora estejam no abdome, é como se não pertencessem a ele.
Entre sistemas polares dentro de um mesmo organismo, há a necessidade de mediação, de equilíbrio entre os opostos. Isso é feito pelo sistema rítmico, sediado no tórax – exatamente entre a cabeça e o abdome. Coração, pulmões e toda a circulação sanguínea são os principais constituintes desse sistema.
No sistema rítmico tudo funciona por meio de alternância entre os opostos, ou seja, contração e expansão, inspiração e expiração, sístole e diástole. Suas características lembram, em parte, o neurossensorial e, em parte, o metabólico. Coração e pulmões têm alguma capacidade de regeneração, nada comparável, por exemplo, ao fígado. Porém, não tão reduzida quanto o tecido nervoso.
As costelas formam uma caixa no tórax, como o crânio. Porém, não de ossos chatos, mas sim longos, como os ossos dos membros. Não possuem a mobilidade destes, mas existe algum movimento para as incursões respiratórias.
A simetria no tórax também aponta para algo intermediário. Aparentemente, coração e pulmões são simétricos. Todavia, o coração está ligeiramente desviado para a esquerda e para frente e suas cavidades esquerdas são mais desenvolvidas que as direitas. O pulmão direito tem três lobos, enquanto o esquerdo possui apenas dois.
O sistema rítmico deve promover a harmonia entre o que está acima (neurossensorial) e o que está abaixo (metabólico-locomotor), assim como o que está dentro vida psíquica e o que está fora (mundo externo).
Cada sistema e órgão podem ser individualmente trimembrados.
Três qualidades anímicas se desenvolvem, tendo como base cada um dos três sistemas. O pensamento se origina no do sistema neuro-sensorial, o sentimento no rítmico e a vontade, do metabólico-locomotor.
O predomínio metabólico-locomotor no primeiro terço da vida (até os 21 anos) está ligado à maior incidência, nesta fase, das doenças inflamatórias agudas, geralmente febris, chamadas na medicina antroposófica de ‘doenças quentes’. No terço médio – entre 21 e 42 anos – com o predomínio rítmico, normalmente se tem a fase mais estável da vida do ponto de vista de saúde. Já a partir dos 42 anos, com o predomínio neurossensorial, tornam-se mais frequentes as doenças assim chamadas ‘frias’, esclerosantes e degenerativas.
Outros fundamentos antroposóficos são importantes para a compreensão do ser humano, dentre eles a composição sétupla, a duodécupla, os quatro órgãos cardinais, as leis biográficas, as constituições infantis. Sugere-se a leitura das obras referenciadas para sua compreensão.
Referências bibliográficas
• Associação Brasileira de Medicina Antroposófica. Revista Arte Médica Ampliada, ISSN: 1516-5892.
• BOTT, V. Medicina Antroposófica, uma Ampliação da Arte de Curar. Vol. I e II. 3ª ed., São Paulo: Associação Beneficente Tobias, 1991.
• Glöckler, M. Anthroposophische Arzneitherapie für Arzte und Apotheker. Vol. I e II, Stuttgart: Wissenschaftliche Verlagsgesellschaft, 2005.
• HUSEMANN, F.; WOLFF, O. A Imagem do Homem como Base da Arte Médica. Vol. I, II e III. São Paulo: Editora Resenha Universitária, 1978
• KOMMISSION C. Anthroposophische Arzneimittel - Aufbereitungsmonographien der Kommission C. Filderstadt: Gesellschaft Anthroposophischer Ärzte in Deutschland, 1999.
• MILANESE, F. Medicamentos Antroposóficos Elaborados Segundo o Processo do Quimismo. São Paulo: Sirimim Aprimoramento da Arte Farmacêutica.
• MORAES, W. A. Medicina Antroposófica: Um paradigma para o século XXI. São Paulo: Associação Brasileira de Medicina Antroposófica, 2005.
• NOVIPHARM. Isorel Therapeutic anticancer agent from Viscum album – Guidelines for Malignant Tumor Therapy. Novipharm Gesellschaft m.b.H.
• Pelikan, W. Healing Plants – Insights Through Spiritual Science. Spring Valley: Mercury Press, 1997.
• Pelikan, W. The Secrets of Metals. 2ª ed., Herndon: Lindisfarne Books, 2006.
• ROEMER, F. Wala Medicines – Vademecum. Bad Boll/Eckwälden: Wala Heilmittel GmgH, 2006.
• Schramm, H. M. Heilmittel-Fibel zur anthroposophischen Medizin. Basel: Novalis Verlag, 1997.
• STEINER, R.; WEGMAN, I. Elementos Fundamentais para uma Ampliação da Arte de Curar. São Paulo: Editora Antroposófica, 2001.
• WELEDA AG. Arzneimittelverzeichnis. Schwäbisch Gmünd: Weleda AG, 2007.
• WELEDA DO BRASIL LABORATÓRIO E FARMÁCIA LTDA. Lista de Medicamentos. São Paulo: Weleda do Brasil, 2008.
• WELEDA DO BRASIL LABORATÓRIO E FARMÁCIA LTDA. Lista de Medicamentos e Substâncias. São Paulo: Ed. Weleda do Brasil, 2007.
• WOLFF, O. Anthroposophic Medicine and its Remedies. Spring Valley: Mercury Press, 1988.
• WOLFF, O. Remedies for the Typical Diseases. Spring Valley: Mercury Press, 1996.
| Top