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Sinto, logo existo!

A arrogância e a prepotência materialistas elegeram a sentença cartesiana “Penso, logo existo” como fator primordial para o subsistir humano e, logo tornou-se o alicerce da ciência baseada em evidência. Sob o primado dessa ciência, chegamos ao fundo do poço do tecnicismo, com a lógica matemática e o sucesso dos modelos informático-computadorizados. Em decorrência disso, desde os primeiros anos de escola somos treinados como repositórios intelectuais dos conhecimentos técnicos (física, matemática, etc); assim as culturas desenvolveram-se com aquisições de novos saberes. Como conseqüência, tornamo-nos “cidadãos” do mundo civilizado, pois comungamos os mesmos pensamentos e usamos as mesmas palavras. Não resta dúvida de que somos agradecidos por essa “evolução descendente”, para dentro das fimbrias da materialidade.

Qual o objetivo dessa decantada evolução? – Conhecer a matéria; e como corolário, conquistamos a “liberdade” (liberdade das leis da natureza). Tornamo-nos livres e julgamos criadores do mundo e do Universo, pois “basta pensar para existir” (cogito ergo sum)....

___Corta. Vamos fazer um interregno a esse pensamento analítico-indutivo. Para isso vamos recorrer, em primeiro lugar, ao próprio autor da sentença acima. Ele fez uma retratação magistral no seu discurso: "E notando eu que, em penso, logo existo, não há nada que me garanta que eu esteja dizendo a verdade, do mesmo passo que vejo com clareza que, para pensar, é preciso existir" (René Descartes, Discurso sobre o Método, São Paulo : Hemus, 1978, p. 68).

Já que “para pensar é preciso existir” (palavras do próprio Descartes), pois afinal somos criaturas e um dia fomos criados, deseja-se nestas linhas corrigir esse erro crasso, pois como afirma Pascoal, "a maioria dos nossos erros decorre de raciocínios bem estruturados baseados em fatos mal observados". Nesse sentido, em segundo lugar, precisamos observar melhor o ser humano, motivo de nosso tema. E para isso é preciso fazer a pergunta: O que é o ser humano? – Platão dizia que nele imperam 3 impulsos: logistikón, timokratikón e epitimetikón. O psicólogo dirá: consciente, sub-consciente e inconsciente. Ou a Antroposofia: pensar, sentir e atuar (ou vontade). São impulsos presentes em nossa psique ou alma. Mas por detrás da alma impera outra força poderosa, que ainda dormita, o nosso Espírito (nosso Eu, nossa essência). Por isso os gregos diziam que o homem possui: corpo, psique e Noûs. Pode-se dizer: corpo, psique e Self ou falando claramente: corpo, alma e espírito.

A alma é o nosso referencial de atuação no mundo, pois através dela “pensamos, sentimos e atuamos” na matéria. Quem está por detrás é o “espírito”, o agente dos impulsos (pensamentais, sentimentais e corporais). Seria como uma luva na mesa. Depois de calçada, adquire movimento. Mas se precisa de uma mente para movimentá-la; ou seja: a mente (Eu), a mão (a alma) e a luva (o corpo físico). Isso pode ser melhor entendido através do símbolo da medicina: o bastão vertical segura a serpente, a qual fica presa por 3 partes: pela cabeça, pelo meio e pelo rabo. Estas são as 3 partes anímicas: Ego, sentimento e id (ou libido). Cabe ao espírito (bastão) todo esforço e maestria para segurar esse ser animalesco (serpente), vil, sorrateiro, ardiloso, beligerante, etc, que se chama “alma”. Através desta parte do ser humano, o espírito espia o mundo, pois afinal esse animal tem olhos, boca, estômago, sexo, etc. Só que o nosso bastão é ainda pequeno e não consegue segurar totalmente a cobra. Esta está enrolada e se espichada fica quase o dobro do bastão. Ou seja, a alma é mais antiga do que o espírito. Pode-se dizer que o espírito nasceu há pouco tempo; enquanto a alma vem de um passado distante. Como Platão fala: "Deus formou a alma antes do corpo: mais antiga pela idade e pela virtude, para comandar e o corpo para obedecer" (Timeu 35). Além disso Aristóteles e Platão sentenciam: “O espírito é exterior e enraizado na alma; ele vem de fora”. O espírito se imiscuiu na alma, a qual é primitivamente animalesca e por isso não temos ainda a força noética (sélfica ou do espírito), para segurar esse ser animalesco, chamado alma. Só que não se pode comparar a alma do animal, “unimembrada” (existe somente a parte inferior, o id ou instintiva), enquanto que a humana é “trimembrada” (sub-dividida em três), como dito acima.

Como se pode constatar, através de um longo caminho evolutivo o ser humano conquistou o “pensar cerebral” e com ele a liberdade, a cidadania e a atuação no mundo. No entanto, com esse pensamento que nasce do cérebro, fica-se preso a um número limitado de caracteres e símbolos (depositados na memória), que se utiliza para elaborar pensamentos, com o intuito de transmitir, por meio da linguagem, uma imagem, para que o outro o entenda. Portanto, não somos livres no pensar intelectual, centrado na alma (na cabeça da cobra, o Ego), pois estamos presos à uma civilização; somente no sentir e no atuar (vontade) somos nós mesmos. Como entender melhor isso?

Vamos recorrer, em terceiro lugar, à Rudolf Steiner, em seu livro O Evangelho segundo Lucas (São Paulo : Antroposófica, 2008, p.135-6), para melhor argumentar a assertiva acima: “O homem tem a possibilidade de fazer valer sua vontade própria, e o mesmo ocorre com seus sentimentos. Sentimento e vontade foram liberados para o emprego particular de cada pessoa; daí o aspecto individual do mundo dos sentimentos e do mundo da vontade. Porém o individual cessa imediatamente ao nos elevarmos do sentimento para o pensar; isto ocorre mesmo já nas expressões dos pensamentos, nas palavras do plano físico. Enquanto cada pessoa possui seus próprios sentimentos e sua própria vontade, passamos imediatamente a algo generalizado ao nos elevarmos ao mundo das palavras e ao mundo dos pensamentos. Ninguém pode produzir seus próprios pensamentos. Se estes fossem tão individuais quanto o são os sentimentos, nunca nos entenderíamos. Por conseguinte, o homem foi privado de usar arbitrariamente significado e pensamento, tendo estes ficado provisoriamente recolhidos às esferas divinas, para somente mais tarde serem entregues aos homens. Por este motivo podemos encontrar em qualquer lugar da Terra pessoas individuais com sentimentos e impulsos volitivos individuais, mas deparamos sempre com um pensar, uma linguagem comum nos povos. Onde existe uma linguagem comum, reina uma divindade popular comum. Essa esfera ficou vedada ao arbítrio humano; por ora, são os deuses que aí atuam.”

Como se está vendo, o sentimento deve atingir a um degrau muito mais elevado nesta atual época. Temos que alçar vôo através deste novo paradigma. São algo bem diferente de sentimentos piegas, egoístas, interesseiros, apaixonados, concupiscentes, etc., os quais têm mais a ver com instintos primitivos, animalescos, que se originam da esfera inconsciente (centrada no abdômen) e não propriamente do sentimento em si (centrado no coração). Para se atingir a este novo patamar de sentimento, como pretendido aqui, precisa-se evoluir muito, passar por todas as etapas culturais intelectivas, pois somente quem atingiu a esse degrau, pode se candidatar a acolher o espírito dentro de si.

É como uma planta que se esforça para atingir à sua meta de “cálice floral”. A planta, quando amadurecida, se abre para ser “tocado” pelo alto (pela alma cósmica), para ser transformada em “flor”. Isso pode ser dito de outra maneira: da substância Clorofila (no verde da folha), se abre para o novo e se metamorfoseia em substância Alcalóide (que dá o colorido à flor). Dois princípios que se tocam no “botão floral”. No homem são representados pelo sentimento e Espírito. Pode-se nomear de “sentimento crístico”, em que o sentir acolhe o Ser Superior. Por isso na monumental pintura de Mathias Grünewald, aparece João batista dizendo: “Não eu, mas Cristo em mim”.

Como desenvolver esta nova qualidade humana através do sentimento? Johann Gottlieb Fichte sentenciava que devemos descer da esfera do “Eu Superior”, para nos situarmos na esfera do “eu empírico”, cujo objetivo é tornarmo-nos “letrados”. Somente assim poderemos compartilhar e transmitir aos outros o que recebemos como dádiva. Também Friedrich Schiller nas suas “Cartas Estéticas”, aborda a procura do Terceiro Elemento, onde reina a Estética, a Beleza, na qual irá harmonizar os impulsos polares, numa visão trimembrada do ser humano. Vide artigos deste autor (Impulso do Jogo e Kaspar Hauser) no site www.vivendasantanna.com.br

Como foi dito acima, existe uma esfera mais elevada do ser humano, denominado de espírito (Eu), representado pelo bastão. O espírito toca o homem através do coração. Nessa esfera vigem duas forças polares: sístole (contração) e diástole (relaxamento). Na primeira instância, a “alma comprime” o coração através das substâncias (sub+stare) sódio (Na) e cálcio (Ca). Por isso numa excitação anímica muito grande podem ocorrer hipertensão, taquicardia ou morte (é a sístole). Na segunda instância o “espírito toca” o coração, através da substância potássio (K), período que corresponde à parada cardíaca, ao “silêncio cardíaco” (é a diástole). Contração (sístole) e parada (diástole). Duas forças que se tocam na esfera cardíaca = alma e espírito, respectivamente.

Portanto é justificável dizer: Sinto, logo existo! Porque somente através do sentir tornamo-nos seres humanos (nós mesmos). Porque atrás do sentimento atua o espírito, o qual nos dá existência (sentir + existir). Porque somente através do sentimento é que atua o outro impulso que vem de cima, o Espírito = “Não eu, mas Deus em mim”.

Esta é a nova maneira que se precisa cultivar a partir de então: o “sentir” deve se deixar permear pelo “espírito”. Ou melhor, o sentir deve ficar livre para que o espírito possa atuar. Ou seja, precisamos aprender a olhar o mundo através do sentir.

Dr. Antonio Marques
médico antroposófico

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